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Antonio Del Guercio:

Alberto Sughi ou do humano possivel.

Alberto Sughi, Dietro la finestra

 

Através desta exposicào, Alberto Sughi toma contato, pela primeira vez, com a critica e o pùblico da America Latina.

E fà-lo, fornecendo eie pròprio, com os seus instrumentos de pintor, uma espécie de mapa do seu longo itineràrio. Geralmente sào os criticos que dào a estrutura expositiva à exigència de narrar antologicamente o percurso de um artista de densa biografia. Desta vez, o pintor fez a sua propria antologia, percorrendo a sua vida artistica desde o longinquo 1957 até 1990, com cinquenta tèmperas realizadas ha quatro anos. Em suma, uma meditacào em concreto. Exemplar pela precisào cultural com que os diversos momentos e dificuldades da sua pesquisa sào, nào tanto reevocados quanto reincarnados. Uma precisào suportada por uma constante inspiracào: em resumo, um encontro extraordinàrio de lucidez historico-critica e de fervor criativo. Ao critico, isto é, a mim nesta ocasiào, a funcào paralela de tentar um raciocinio que seja de qualque utilidade para os amigos de além-mar, colocando este artista italiano no lugar que ocupa no panorama, nào so italiano, mas da arte contemporànea e no àmbito do debate critico internacional. Alias, debate atualmente aberto mais do que nunca, percorrido por exigéncias de revisào que impòem uma nova perspectiva dos muitos aspetos daquela pesquisa artistica dos nossos dias, entre os quais, justamente, aquele constituido pelo contributo de Alberto Sughi. E entào, a custo de parecer provir de muito longe, desejo lembrar, a mim pròprio e também aos meus leitores, de que existe um fio vermelho corre ao longo da complexidade da arte moderna desde os seus dramàticos inicios no firn do século XVIII, entre o neo-classicismo de carater jacobino e o proto-romanticismo. Este fio vermelho liga entre si expresses muito diversas, posices culturais, mentais e psicológicas certas vezes opostas e alternativas; e contudo coloca-se no centro, com uma declarada evidència objetiva, de um longuissimo percurso — até aos nossos dias - da arte moderna e depois contemporànea. Para definir tal percurso diria que o mesmo é o tema frequente do custo humano da história e da sociedade civil; isto é, o preco daquilo que no passado era chamado progresso e que agorà nào sabemos bem comò definir.

O Marat morto de David, A Jangada da Medusa de Géricault, o Napoleào no campo de batalha de Eylau do barào Gros, A Grècia moribunda em Missolungi de Delacroix - cada uma destas obras assinala, juntamente com muitas outras, o variar, no momento de fundacào da modernidade entre o firn extremo do século XVIII e o terceiro decénio do século XIX, de uma especial maneira de responder na arte ao sangue, ao suor, ao pò, à morte (e às iluses) que acompanharam aquele longo, tràgico e contudo alto momento. Foi aquela a fase na qual se consumiu um grande acontecimento artistico sobre o tema da "morte do herói" - objeto do homónimo, agudo e famosissimo livro, publicado por Jack Lindsay no alias longiquo ano de 1960. No decorrer deste acontecimento, as chamas finais da retòrica — revolucionària ou nacionalista - sào pouco a pouco apagadas, e em primeiro lugar pelo pròprio David, cuja contradicào expressiva, desde os vibrantes Horàcios ao livido Marat, é radicai. E, deixando de lado casos tào clamorosamente célebres e celebrados corno a obra-prima de Géricault ou A Grècia moribunda de Delacroix, desejo convidar a pensar naquele contraste alucinante, no Napoleào em Eylau de Gros, entre o melado cortejo de cavaleiros de guarda a um Napoleào porcelanado e inutilmente abencoador e o primeiro plano da obra: o campo de neve, lama e sangue misturados onde agonizam os moribundos. Um primeiro plano de pintura inèdita, que ouso definir de uma qualidade antecipadamente informai (em 1808!) e ao mesmo tempo impiedosamente descritiva. Certamente este nào é o lugar indicado para tratar minuciosamente a história a que me referi e que vai desde todo o século XIX ao decorrer no nosso século XX que està para terminar. E suficiente evocar aqui os tracos essenciais de uma história que alterna improvisas ressuscitaces - na realidade muito breves — do herói e do seu gesto (corno se pode esquecer o Tipògrafo de Daumier, urti dos desenhos que legitimaram a opiniào de Balzac acerca de Daumier que "possui algo de Michelangelo sob a pele") e a dureza dos longos dias, o desgaste do dia-a-dia, a consumacào das energias no interior dos apartamentos borgueses nos fins do século XIX (aquelas absortas familias de Vuillard; e aqueles insensiveis mas confrangedores delirios prospéticos de Valloton, que o maior estudioso de arte italiano deste século - Roberto Longhi - chamou o "huguenote feroz"). Mas é ao longo dos decénios do nosso século que sào abandonadas definitivamente todas as iluses "heroificantes" delegandas à pintura académica ou dominada, a involuntària caricatura dos titanismos que também, desde Michelangelo aos visionàrios Fussli e Blake e até Daumier, tinham dado pàginas altissimas à história da arte do Ocidente, concluidas pelas estupendas e terriveis "calaveras" de José Guadalupe Posada. É com Giorgio De Chirico que a "melancolia da hora" bloca a imagem num tempo imóvel no qual (devo citar ainda Longhi) "o homem ortopèdico recita com voz estridente um discurso sem sentido às estàtuas deserdadas da Grècia". E quando, após a primeira fase emergente da Metafisica, aqui e ali entre a Europa e a America o "homem ortopèdico" e o manequim de De Chirico encontrarem, uma sua re-articulacào figurativa, terà mais capitulos o discurso da arte sobre a condicào humana à sombra das "estàtuas deserdadas", no tempo, denunciado por Nietzsche, do homem moderno europeu turista no jardim da pròpria história, incapaz de fazer germinar novos deuses, novos mitos. Sao muitas as experièncias da arte entre as duas guerras, cuja figuracào problemàtica, de segundo grau, "verosimil" mas nào verista, tipologicamente determinada e contudo de sentido muito mais critico-emblemàtico do que "representative", é a relacào — imediata ou indireta - com os valores crìticos (ou seja, de crise) que De Chirico tinha centralizado dentro das suas reunies incongruentes de personagens, coisas e simbolos: dos exitos da Nova Objetividade - Schad ou Radziwill e o pròprio Dix mais intenso - aos Precisionistas americanos, cujas precisas, geométricas e desoladas arquiteturas desabitadas sob uma fria luz zenital nào podiam ter sido imaginadas sem o precedente dechiriquismo .

Certas vezes mais de longe e por transposicào metaforica outras vezes - com o passar dos anos, desde o inicio da terceira decada do século para diante, em direcào à crise de 1929 e aos conflitos intra-europeus nos meados dos anos '30 até à guerra e ainda depois - mais diretamente expressa, a temàtica dos custos humanos da história e da pròpria quotidianiedade do viver urbano enriquece-se de novos, extraordinàrios capitulos: a impiedosa, calvinistica, exibicào critica da solidào urbana de Hopper (que nunca esqueceu a pròpria divida em relacào à arte humanistica da Italia, Piero della Francesca em primeiro lugar, do qual eie fornece uma versào surgidos nos anos 20 e mesmo até McGarrell, nascido em 1930. Se tivesse havido, quando Selz elaborava a sua exposicào, a mesma velocidade de hoje na circulacào internacional das experièncias artìsticas, talvez eie tivesse tornado em consideracào alguns dos jovens artistas europeus daquela època, encaminhados para novas imagens do homem (e Peter Selz, ao ler estas notas, perdoarà se lhe atribuo hipotéticos pensamentos retrospetivos): Alberto Sughi, pela vista perspicaz a desolados lugares urbanos, algumas imagens urbanas, entre realismo cru e magma informai de Renzo Vespignani; certos turvos pensamentos de Marcello Muccini a Caravaggio; os aspros ditados visionàrios de Tino Vaglieri; as primeiras provas, jà intensas, de Bepi Romagnoni prematuramente desaparecido e de Giuseppe Guerreschi. Isto, mais ou menos, para a Italia, entre Roma e Milào. Mas também Paris, naquele tempo, nào era de transcurar dados os exórdios brilhantìssimos de Paul Rebeyrolle sobre um tema "quente" e de Jean Monory sobre um tema "frio", enquanto Ipoustéguy se propunha comò o escultor primàrio que atualmente todos reconhecem — embora alguns o facam com duro esforco.

Entào, direi aos meus colegas da America Latina, e aos visitantes desta exposicào, que està é a "familia", o grande clan dividido em individualidades artìsticas diversas, a àrea nào de tendència estreita, nào de "ismos", mas de articulaces livres e de algumas grandes referèncias comuns, das quais Alberto Sughi faz parte, e para as quais contribuì com a sua inconfundivel mensagem.

Creio que se nota imediatamente corno este pintor se articulou ao longo de todas as suas obras, sobre o fio de uma coerència de base, cada vez mais aberta a significativas oscilaces da linguagem, entre os dois limites extremos de uma representacào crua e precisa e de um andamento visionàrio, fantasmàtico, até certas vezes à desencarnacào ectoplasmàtica dos corpos e das coisas. E entre estes dois polos extremos, Sughi tem no decorrer dos anos assumido as posices intermédias e até, todas as contaminates entre as possibilidades linguisticas que sugeriam.

O que equivale, em termos daquela critica das linguagens concretas que somente eia pode em qualquer modo e por quanto possìvel, narrar com palavras a obra visiva, a evidenciar o carater decididamente "problemàtico" da pintura de Sughi (e, com mais uma, e ùltima, citacào de Longhi, direi que nào se "explica" uma pintura, mas dà-se-lhe "uma resposta falada"). Este carater problemàtico é orgànico à posicào anti-ideológica, nào "de tese", nào apoditica, que a mesma representa. No grande contexto dos discursos sobre arte contemporànea no vivido concreto, na consumpcào humana dentro da civilizacào da "multidào solitària", sobre aquelas consumpces e reduces da plenitude humana (daquela, certamente mitica mas imaginària, globalidade humana) nas quais desde Poe e de Baudelaire em diante a arte intervem com a propria acào - sobre este complexo problema da modernidade e dos seus traumas, Sughi nào se move a partir de uma certeza, de juizo, nem aquela negativa ou negadora.

Eie nega à pintura a funcào de "demonstrar", funeào que fatalmente acaba por atacar a autonomia linguistica da arte, e por submeter os instrumentos ao exercicio subalterno da representacào visiva de coisas que a palavra elaborou. Embora possa parecer paradoxal, a antiga teoria maneiristica da distincào entre "desenho interior" e "desenho exterior" que reduzia a obra de pintura à "execucào" de um projeto preliminar à mesma, pesou na arte contemporànea (quer em certos momentos de maior conflitualidade ideològica no mundo quer, ao oposto, nas tendèncias conceitualisticas), muito mais do que a sua insuportabilidade teòrica poderia deixar imaginar. Que de Stendhal desde 1824 em polèmica con a "execucào" neo-clàssica, à qual eie opóe a "expressào (por mim sublinhada. Antonio del Guercio) das paixes da alma", até Picasso (nào procuro, encontro"), toda a àrea do pensamento artìstico moderno tenha contestado e conteste aquela dicotomia degradante, isto nào impediu que a mesma se representasse em artistas de grande valor.

A recusa, a nivel conceitual, de uma definicào "a priori", puramente ideològica, da condicào humana e a recusa, a nivel de linguagem pitórica, de uma cifra blocada, convergem a dar um movimento livremente evolutivo à pesquisa artistica de Sughi no tempo. Tal pesquisa tem, no plano da linguagem, o ponto irreversivel de uma figuracào fortemente submetida à acào variegada de uma luz muito especial: às vezes decididamente artificial, outras vezes crepuscolar, ou (sobretudo nos trabalhos mais recentes), ansiosamente dirigida a uma naturalidade. E nào sem o atravessamento de uma particular ideia de cor local misteriosamente declinada sem atraicoar aquele quociente de tonalismo implicado pela subposicào dos corpos e das coisas a uma acào da luz. E os mesmos momentos de nào-luz, de escuridào profunda, mantém aquela inspiracào tonai, pela pròpria variacào das tonalidades lùgubres dentro da uniformidade escura da primeira e inganàvel aparència. Em resumo, urn diverso nivel de definicào ou de dissolucào dos corpos na luz, os momentos diversos do percurso de Sughi dentro das incognitas sempre renovadas da propria temàtica, dentro das diversas estaces da sua viagem. E o adensamento formal, a representacào agregada, centripta, das formas, verifica-se também onde um tema de natureza morta, ou melhor, de objetividade, se exprime com uma estranha, inquetante, contaminacào de certeza concreta do objeto e do mistério, de elusiva e ambigua aparicào do proprio objeto, que torna emblemàtica a sua presenca. Corno se pode nào notar no trabalho de Sughi o seu particularissimo modo de intervir na grande temàtica do emblematismo enigmàtico, interrogativo, iniciado com as primeiras obras metafìsicas de De Chirico?

Deve-se também notar corno é graduai a profunda escuridào à qual me referi; comò eia oscile de uma forma "vibrada" a uma forma "blocada"; e corno aesta oscilacào articule, em cada quadro, um discurso complexo sobre a dialética dominante-dominado na condicào humana.

Està capacidade de restruturar, a partir de urti nùcleo essencial e irrenunciàvel, a pròpria mensagem, està disponibilidade a ser investigador permanente de uma verdade que muda com o tempo, tal corno muda com o tempo o pròprio artista, evoca em mirti a inesquecivel memòria de Giacometti. E especialmente um fragmento desta memòria: num bistrot ao pé do seu atelier de Paris cheio de trabalhos, uma sua, comò sempre, aguda e clara licào ao critico, sobre a impossibilidade de "fixar" a forma, de fechar o nùmero, visto que aquilo que o pintor tem à sua frente, imerso no tempo muda no tempo, enquanto eie proprio, imerso no tempo, muda também - mas diversamente - pelo que nào existe um resultado "definitivo"q a atingir, mas um processo, um percurso, uma viagem, em direcào de uma Itaca inalcancàvel, cujo resultado é o fruto que a cada ètape se colhe, singular e de certa maneira irrepetivel. Parece-me que està licào, que alias é contida no interno do patrimònio da arte moderna, pelo seu pròprio declarado estilo nào clàssico, pela sua aderència a um mundo contraditório e conflitual, conserva em si o percurso, muito longo, de Alberto Sughi . O qual nos seus trabalhos mais recentes, mais uma vez se pòs em causa e de modo muito radicai.

De fato, introduziu um dado medidativo, um aspeto de ausente sondagem existencial que, sendo dirigida ao essencial, se concretizou na simples, mas quente e vibrante imersào de personagens-emblema dentro de uma naturalidade prepotentemente surgida da vasta interlocucào com o artificialismo urbano.

A cidade, o tema urbano, a relacào cidade-artificialidade, estào declaradamente presentes, mas jazem em modo mais implicito dentro daquela natureza vivente que às vezes esconde em parte - ou revela — facetas vividas de uma Roma que milagrosamente voltou a ser a "cidade do silèncio", entre as tonalidades ocre das casas e os diversos verdes dos seus parques e jardins.

Nào é, està, uma arte "pacificada"; a antiga ànsia, a canseira interrogativa, também aqui fermentam as imagens, subtraindo-se a todos os prazeres da vista. Tal comò, alias, se subtraem as estruturas essencialmente abstratas que se agregam para provocar uma semelhanca: também este aspeto é um ulterior indicio da persistente e renovada abertura de Alberto Sughi a ambas as problemàticas da forma e do sentido da arte da nossa època.


Antonio Del Guercio
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